J. G. de Araújo Jorge

A Companhia


Do amor não quero mais a aventura,
quero a companhia.

Já não procuro ilusões e surpresas
se todos os caminhos foram percorridos,
se oblíquo sol da tarde alonga a minha sombra
presa ainda a meus pés, a fugir, para onde?

Quero a compreensão, a tranqüila ternura,
a presença melhor depois que amada,
a que sabe ser luz clareando a estrada,
ser aragem na fronte ardente a inquieta;

- alta maré para encobrir escolhos,
ser água para a sede que atormenta,
sombra, quando a luz doer nos olhos.

A que inteira se dá sem pedir nada
só pela humilde alegria de se dar!

A que é pousada para o amor que vinha
já cansado de tudo e que não tinha
onde ficar.

A que tem mãos felinas, mãos que arranham
infladas de amor,
sem a gente sentir,
mãos que enlaçam, depois, cantam ternuras,
e que emberçam as nossas amarguras
e nos fazem dormir...

A que é mulher, - mar alto, porto e abrigo -
a que fica à nossa espera,
a que se pode voltar a qualquer hora...
A que sabe perdoar nossos pecados
nossos marinheiros desejos desgarrados
e não nos mandam embora...

Do amor não quero mais a aventura
quero a companhia:
a que depois do beijo
me dará a mão,
a que será minha - à noite se entregará
sem pejo -
e impoluída e pura,
continuará comigo, com a mesma ternura
no coração...

Quero a doce, a permanente companhia ...

A que depois da noite
é o meu dia,
e, com o braço em meu braço
há de acertar seu passo
na mesma direção...

do livro Os mais belos sonetos que o amor inspirou IV

Pablo Neruda

Soneto LXVI

Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,
te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
e a medida de meu amor viageiro
é não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro
seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor a sangue e fogo.

Cem sonetos de amor- Pablo Neruda/ pág. 77.

Clarice Pacheco

Uma cidade diferente

Era uma cidade
meio diferente,
ficava escuro ou claro
assim, de repente.

As casas andavam pelas ruas
enquanto que as pessoas não,
as casas trabalhavam
e as pessoas viviam plantadas no chão.

As frutas eram verdes,
as árvores eram coloridas,
das frutas estragadas nasciam
as árvores mais bonitas.

O Sol aparecia à noite
iluminando as ruas,
de dia o que iluminava
era a luz da Lua.

Os carros passavam voando
sempre muito apressados,
porque se fossem devagar
é que eram multados.

Os aviões navegavam
atravessando os sete mares,
os navios sobrevoavam
cortando à tona os ares.
Em Caderno de poesias-Clarice Pacheco. pág. 33.

Cecília Meirelles

CANÇÃO DO
AMOR-PERFEITO

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve, desunido
para sempre como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade, seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio, como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco, vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo com suas conquistas áridas.

Esperarei que te seque, não na terra,
Amor-Perfeito, num tempo depois das almas.


Carlos Drummond de Andrade

Oficina irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.